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  • May 09, 2025
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María Belén Garrido

Em 20 de abril de 2005, Lucio Gutiérrez deixou seu cargo como presidente constitucional do Equador. Isso ocorreu devido à ação não violenta de várias semanas, especialmente na capital do país. Os motivos de sua saída antecipada do poder foram, sobretudo, de caráter político e não tanto econômico, como aconteceu em outros países da América Latina.

Lucio Gutiérrez chegou ao poder em 2003 em colaboração com o partido político Movimento Popular Democrático (MPD) e Pachakutik, considerado na época o braço político da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). Lamentavelmente, essa aliança durou apenas seis meses. O principal erro político de Gutiérrez foi apoiar os membros de sua própria organização política, o Partido Sociedade Patriótica (PSP), que, junto com outros deputados, removeram de seus cargos os magistrados e diretores da Corte Suprema de Justiça, do Tribunal Supremo Eleitoral e do Tribunal Constitucional. O desrespeito à independência dos poderes do Estado gerou uma forte rejeição por parte de várias organizações locais e nacionais do Equador, que realizaram ações não violentas contra ele.

Gutiérrez, a princípio, tentou legitimar essas decisões por meio de uma consulta popular, que não foi realizada e, diante da pressão incessante, Gutiérrez destituiu os magistrados da Corte Suprema de Justiça em 15 de abril de 2005. O presidente desta Corte, Guillermo Castro Dáger, havia anulado os processos penais contra Abdalá Bucaram, ex-presidente da República e, até aquele ano, foragido da justiça por casos de corrupção. Isso permitiu seu retorno ao país. Esse fato aumentou ainda mais a participação da população nos protestos, que se intensificaram e passaram a exigir que “todos fossem embora”. Gutiérrez, por sua vez, decidiu enfrentar essas reivindicações com repressão policial e contramarchas. Os diversos participantes das ações não violentas foram chamados pelo próprio Gutiérrez de “foragidos”, um nome que os manifestantes decidiram adotar.

A repressão policial foi mais intensa do que em rupturas presidenciais anteriores como a de Abdalá Bucaram em 1997 ou a de Jamil Mahuad em 2000. A quantidade de gases lacrimogênios utilizados foi muito maior, resultando na morte de três pessoas.

O que permitiu limitar a repressão por parte da Polícia? O que provocou a renúncia do Comandante-Geral da Polícia, general Jorge Poveda? A seguir, apresento, a partir do conceito de distância social, o papel que esse fator pode ter na defecção, entendida como um ato pelo qual uma pessoa deixa de se alinhar aos direcionamentos ou ordens da instituição à qual pertence, podendo resultar em sua renúncia, na não cooperação com a função designada e até mesmo na colaboração com o lado oposto. As defecções, de acordo com Chenoweth e Perkosky, podem contribuir para a redução da violência em 88%.

Os dados coletados para este artigo baseiam-se em três trabalhos de campo realizados entre 2017 e 202 em diversas cidades do Equador, em entrevistas semiestruturadas com vários representantes de organizações sociais, indígenas, sindicais, organizações não governamentais, membros da Polícia e das Forças Armadas, além da revisão de jornais e de literatura secundária.  

O conceito de distância social foi introduzido por Johan Galtung e implica que, quanto mais curta for a relação em termos de origem, condição econômica, educação, local de trabalho, entre outros aspectos, neste caso entre membros dos movimentos não violentos e a polícia, maiores serão as possibilidades de os primeiros influenciarem os segundos. No caso dos protestos de abril contra Gutiérrez, os membros que compunham o chamado grupo dos “foragidos” pertenciam principalmente a setores-chave da sociedade, o que possibilitava esse tipo de influência. Um desses setores era formado por generais das Forças Armadas na reserva, que se opunham às ações do então presidente. Por exemplo, para demonstrar seu repúdio às ações de Gutiérrez, o general da reserva José Gallardo e o ex-diretor da escola militar, coronel Luis Hernández, participaram de diversas manifestações nas ruas e estiveram envolvidos em ações concretas, como levar um caixão com a Constituição para queimá-lo em frente à Corte Suprema de Justiça.

A distância social entre militares da ativa e militares da reserva é muito curta, e o papel destes últimos pode ser decisivo, caso ainda estejam ativos na política. Esse foi o caso do general Paco Moncayo, que não apenas era prefeito de Quito na época, mas também havia sido Comandante-Geral das Forças Armadas e herói de guerra, e usando esse prestígio, apelou aos militares durante uma manifestação, dizendo-lhes: “Vocês precisam entender que [Lucio] Gutiérrez e [Abdalá] Bucaram foram os que mais ofenderam e denegriram a classe militar.” Moncayo se opôs às decisões de Gutiérrez sobre a Corte Suprema de Justiça e, por isso, inicialmente convocou várias manifestações pacíficas na capital. Além disso, como prefeito, reuniu a Assembleia de Quito, composta por diversas organizações que representavam distintos setores da sociedade, ampliando e diversificando o perfil dos manifestantes.

Paco Moncayo, como prefeito da capital, pôde empregar recursos municipais para deter contramarchas que chegavam à capital em ônibus. Para isso, declarou a cidade em estado de emergência e bloqueou a passagem nas principais entradas por terra à capital, colocando caminhões basculantes e maquinário do município na Autopista General Rumiñahui e na Panamericana.

Muitos dos participantes dos protestos tinham uma distância social curta em relação aos policiais, o que pode ser argumentado a partir da declaração de uma policial entrevistada sobre Os Foragidos: 

Basicamente, pessoas de classe média que reclama, que protestam de forma pacífica, mas, acima de tudo, eu acho que ali existiu um senso de identidade que se criou com essas pessoas, porque não era a população pobre do país, era mais a classe média que se manifestava e, com essa classe média, média-alta, a oficialidade da Polícia se identificava. Então, sendo o Comandante-Geral uma pessoa que vem da classe média, essa classe média se identifica e diz: o que eles estão protestando os afeta, e os interesses deles são os interesses da minha família, são os interesses dos meus irmãos.

Essa característica é muito importante porque os membros do Alto Comando da Polícia pertencem, em grande parte, à classe média e alta região andina do Equador. É essencial lembrar que todo membro da força pública tem uma família fora do quartel: primos, irmãos, avós, tios, amigos, colegas de escola, vizinhos, etc. Nenhum deles é indiferente para os policiais ou militares, especialmente se essas pessoas participam das mobilizações e são aqueles que devem reprimir. Por esse motivo, identificar esses laços e, assim, buscar reduzir a distância social pode ser muito vantajoso para fomentar as defecções entre os agentes.

Assim, em 20 de abril de 2005, o Comandante-Geral da Polícia, general Jorge Poveda, pediu baixa e renunciou ao seu cargo. Essa renúncia criou um vazio entre os policiais que estavam nas ruas enfrentando os manifestantes: “por um momento, os policiais não souberam o que fazer, nem em quem atirar”, de acordo com Gerardo Merino. Por sua vez, Saad Herrería, em seu livro O Livro Negro de Lucio, indica que os policiais que estavam na Autopista General Rumiñahui se colocaram à disposição de Paco Moncayo, que estava ali para impedir a passagem das contramarchas, evitando que entrassem na capital. Os militares, por sua vez, por meio do Comando Conjunto, retiraram seu apoio a Gutiérrez, que teve de deixar o palácio presidencial.

Para reduzir a distância social também podem ser utilizados símbolos patrióticos com os quais as forças da ordem se identificam. Por exemplo, nos protestos contra o ex-presidente Gutiérrez, cantava-se o hino nacional ou levantavam-se bandeiras do Equador diante da chegada da Polícia com o fim de limitar sua repressão.

Esse texto baseia-se no livro da autora «Rupturas presidenciais: as ações da força pública perante movimentos não-violentos no Equador em 1997, 2000 e 2005», 20022, Universos de Letras.

* María Belén Garrido, tem um doutorado da Universidade Eichstätt/ Ingolstadt na Alemanha. Trabalhou como uma docente na Universidad Católica del Ecuador e investigadora de Flacso Ecuador. Tem um «master” em Estudos da Paz na FernUniversität Hagen na Alemanha. Suas investigações se centram em temas de paz e conflito com ênfase na não-violência. 

Traduzido por Juliana Scliar

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