Maria Zeballos e Wara Vargas Lara
A poeta boliviana Virginia Ayllón aponta alguns fatores que, ao longo da história, dificultaram a unificação de ideias e crenças sobre o feminismo — ou, ao menos, o estabelecimento de uma agenda comum pelos direitos das mulheres na Bolívia. O primeiro obstáculo, nas décadas de 1920 e 1930, foi a estrutura racial de uma sociedade marcada pelo colonialismo, refletida na incompatibilidade de interesses entre mulheres das classes média e alta e aquelas vinculadas a organizações operárias e indígenas.
Um segundo momento histórico ocorreu nas décadas de 1970 e 1980, quando as ideias feministas se disseminaram amplamente na Bolívia com a expansão da globalização e da democracia. Segundo Ayllón, essas ideias foram introduzidas por meio da implementação de agendas de gênero promovidas por ONGs, o que gerou uma nova cisão: entre feministas autônomas e aquelas vinculadas às agendas de desenvolvimento. As primeiras criticam as segundas por buscarem a inclusão das mulheres sem questionar as estruturas sociais e estatais, mantendo-as em papéis subordinados, inibindo seu crescimento pessoal e perpetuando formas de violência sistêmica.
Para observar empiricamente essa fragmentação entre organizações de mulheres, podemos analisar os protestos dos últimos dez anos com base nos dados da Fundación UNIR Bolivia, referentes ao período de 2010 a 2020. Selecionando todas as organizações relacionadas às pautas de “mulheres”, constatamos que elas representam apenas 1,2% do total. Esse conjunto inclui grupos formais e informais dedicados a campanhas contra a violência de gênero, organizações de base comunitária, profissionais do sexo, mulheres em situação de vulnerabilidade e baixa representação, além de integrantes da comunidade LGBTI.
Essas organizações compartilham o fato de dirigirem suas demandas, prioritariamente, ao Poder Executivo e ao Ministério Público, responsáveis pela implementação de políticas públicas e pela garantia do cumprimento da lei e da justiça. De forma geral, realizam ações predominantemente pacíficas, caracterizadas por baixo grau de confronto, conforme definido pela Fundación UNIR. As estratégias variam entre declarações de estado de emergência, mobilizações permanentes, ameaças de medidas de pressão e atos públicos como vigílias, concentrações e manifestações. As ações mais recorrentes são as marchas, com alguns casos de bloqueio de ruas e avenidas.
Apenas a anarcoativista María Galindo e o coletivo Mujeres Creando enfrentaram repressão estatal direta por realizarem performances em espaços públicos. No entanto, a radicalidade das ações está geralmente relacionada ao contexto específico de cada grupo e suas demandas. Por exemplo, mulheres privadas de liberdade chegaram a empregar formas de resistência mais extremas, como greves de fome, costura dos lábios, retenção de reféns, motins e ocupações de presídios. Outros grupos, como sindicatos de mulheres camponesas ou organizações com atuação mais politizada, também apresentam maior propensão à radicalização.
Se analisarmos a frequência de alianças entre esses grupos ao longo da década, vemos que a articulação entre organizações feministas na Bolívia é frágil e praticamente inexistente. A maioria atua isoladamente, mesmo quando suas demandas são semelhantes e direcionadas às mesmas autoridades. A ausência de convergência entre suas agendas e a incompatibilidade de visões dificultam a formação de coalizões amplas, capazes de mobilizar pressão coletiva significativa sobre o Estado.
Para compreender a rede feminista na Bolívia, é preciso identificar seus principais atores. Nesse cenário, a ONG Coordinadora de la Mujer é a mais bem posicionada. Segundo Ayllón, desde os anos 1980, essa entidade incorporou o enfoque de gênero ao desenho de políticas públicas nacionais, promovendo a inclusão das mulheres nos âmbitos socioeconômico e político. É também a única organização boliviana que, no campo dos direitos das mulheres, construiu uma rede de protesto, articulando-se com outros 14 grupos desde 2010. Além disso, ocupa a 125ª posição em um universo de 2.800 organizações, o que revela seu prestígio e reconhecimento como liderança nesse campo.
A Coordinadora não é uma entidade isolada — ela é composta por cerca de 20 ONGs em diversas cidades bolivianas, o que facilita a mobilização em datas simbólicas como o 8 de março (Dia Internacional da Mulher) e o 25 de novembro (Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres).
Apesar de a ação de rua ser um dos pilares da militância feminista, ela não é o único espaço de articulação dessas organizações. Existem também os encontros feministas e fóruns temáticos, como o promovido pela própria Coordinadora em 2011, que reuniu mais de 100 organizações para debater a despatriarcalização.
Importante destacar que a Coordinadora mantém relações diretas com o Estado boliviano, inclusive com movimentos sociais aliados ao governo, como a Confederação Nacional de Mulheres Camponesas Indígenas Originárias da Bolívia Bartolina Sisa (CNMCIOB-BS). Esses vínculos fortalecem sua capacidade de influenciar a formulação de leis e políticas públicas com enfoque de gênero, além de promover transformações internas em sindicatos, instituições públicas e privadas, meios de comunicação e outras entidades da sociedade civil.
No entanto, a centralização dessa influência também implica riscos, como o monopólio da agenda, do discurso e da legitimação das demandas, o que pode excluir posições divergentes e limitar o pluralismo dentro do movimento.
Mas por que a articulação é tão importante? O sociólogo Mario Diani define um movimento social como uma rede de organizações interligadas por colaborações contínuas em torno de um objetivo comum. Trata-se de uma estrutura que permite troca de recursos, fortalecimento da identidade coletiva e respeito à autonomia de cada grupo. A força do movimento social está justamente em unir diversidade e coesão, sem concentrar o poder em um só núcleo.
Movimentos sociais interpelam o Estado e a sociedade, buscando transformações graduais. No entanto, como mostram os dados, esse ideal ainda está distante na Bolívia. A consolidação de um movimento feminista só será possível por meio de alianças estratégicas e de uma abordagem compatível com a realidade institucional, que permitam ao Estado reconhecer e garantir o pleno exercício da autonomia das mulheres. Enquanto cada grupo seguir lutando isoladamente, a unificação do movimento se torna difícil — e isso impacta diretamente a vida das mulheres bolivianas.
Foto de referência: Marcha de 25 de novembro de 2016 em La Paz (Bolívia). Autora: Wara Vargas
Maria Zeballos
Antropóloga boliviana. Pesquisa alianças de protesto entre organizações sociais na Bolívia em sua dissertação de mestrado em Teoria Crítica no Programa de Pós-Graduação em Ciências do Desenvolvimento da Universidad Mayor de San Andrés.
Wara Vargas Lara
Fotógrafa e fotojornalista boliviana. Expôs seu trabalho em diversos países da América Latina e Europa. Atualmente documenta o trabalho de parteiras tradicionais na Bolívia com apoio da National Geographic.
Publicado em 12 de abril de 2023
Traduzido por: Rafael Moreira