Traduzido por Lívia Bueno
Em 8 de Novembro de 2011, estudantes da Universidade da Califórnia (UC) na cidade de Davis (EEUU) ocuparam sem violência uma calçada de pedestres, como parte de uma campanha implantada em todo o sistema de sedes da UC, para protestar contra um aumento nas mensalidades e o corte de fundos para as universidades. Alguns dias antes, a polícia havia usado seus bastÕes contra estudantes e funcionários da faculdade em outro campus, a Universidade da Califórnia, em Berkeley, e havia destruído um acampamento semelhante ao implantado na UC Davis.
Os vídeos mostram a polícia do campus da UC Davis e a polícia local usando equipamentos anti-motim e aparentemente carregando pistolas de paintball, capazes de disparar projéteis de spray de pimenta. Quando os estudantes se sentaram com os braços acorrentados e se recusaram a sair da calçada, o tenente da polícia do campus, John Pike, borrifou-os a uma curta distância com uma dose de spray de pimenta de alta concentração, na frente de uma grande multidão de estudantes observando o fato. Muitos dos presentes gravaram o evento, e um dos vídeos do ataque se tornou viral, causando indignação pública na forma de memes satíricos espalhados pela internet, um pedido popular e mais protestos estudantis.
Este é o paradoxo da repressão que nós e nossos colegas exploramos em um volume intitulado “O paradoxo da repressão e os movimentos não-violentos” (publicado, em inglês, pela Syracuse University Press, 2018). É uma dinâmica fundamental da resistência civil não-violenta também chamada de “ato contraproducente” e “jiu-jitsu político”. Nos exemplos mais claros desse paradoxo, quando autoridades, elites ou contra-manifestantes usam força física para tentar desmobilizar ativistas não-violentos, imagens de espancamentos, prisões, ataques com cães, mangueiras de água e assassinatos podem gerar uma indignação moral que pode levar a um aumento na mobilização e no apoio aos ativistas, e às vezes até mesmo à deserção de simpatizantes dos oponentes para o movimento. Quando os ativistas não-violentos mantém sua postura não-violenta, eles aumentam o contraste entre a violência de seus oponentes e de suas próprias ações , aumentando a possibilidade de que a repressão seja contraproducente e que as autoridades percam a legitimidade.
O incidente do spray de pimenta na UC Davis ilustra o paradoxo da repressão de diversas maneiras. Em primeiro lugar, os alunos sentados na calçada de seu próprio campus mostraram claramente que não representavam nenhuma ameaça à polícia ou às outras pessoas ao seu redor. Então, quando o Tenente Pike usou o spray de pimenta para incapacitá-los, foi lançada uma petição pedindo a renúncia do Reitor da Universidade, que obteve cerca de 115.000 assinaturas. Os estudantes pulverizados com o spray de pimenta processaram a Universidade e ganharam uma disputa federal com um acordo no valor de um milhão de dólares, juntamente com um pedido de desculpas por escrito da Reitora Linda P.B. Katehi.
Este incidente também ilustra a gestão da repressão, os esforços dos ativistas não-violentos para aumentar a possibilidade de que as medidas repressivas sejam contraproducentes para aqueles que as executam. Usar métodos de intervenção não-violenta ao ocupar a calçada foi talvez o primeiro ato estratégico de antecipar a repressão e, então, uma vez que o oficial de segurança do campus atacou os alunos, os ativistas online trabalharam para gerenciar e enquadrar o evento de forma a maximizar seu alcance. Em um exemplo fascinante de ativismo cultural, os memes visuais proliferaram através da internet. As imagens do Tenente Pike sobrepostas às dos estudantes mostraram a ação policial como irresponsável, implicando que era absurda, desmedida e anti-americana.
Cultivar o efeito do ato contraproducente revela que a repressão é uma interação poderosa. Ativistas não-violentos podem tomar decisões estratégicas que os preparam para a repressão, mas também moldar o impacto da repressão com suas próprias decisões e táticas. O vídeo do evento mostra a indignação imediata dos alunos que permaneceram como espectadores, que gritaram slogans como “que vergonha!” e “quem você serve, quem você protege?”, enquadrando o evento como uma violação do contrato social.
Mas até mesmo um ato estratégico mais notável de gestão da repressão ocorreu à medida que o confronto foi se desenvolvendo. Quando a polícia e os agentes de segurança prenderam os alunos, a raiva da multidão cresceu. Os policiais, em desvantagem numérica, ficaram visivelmente nervosos enquanto tentavam se afastar da multidão ao seu redor por três lados. Eles formaram um círculo costas contra costas, e alguns começaram a levantar suas armas lentamente. A multidão começou a gritar mais alto, e a possibilidade crescente de um confronto podia ser sentida. Um policial poderia entrar em pânico e puxar o gatilho? Alguém atiraria uma garrafa de água na multidão e daria à polícia a justificativa para usar mais força física?
O que começou como uma ação estratégica não-violenta pode ter resultado em um confronto violento. Se a polícia tivesse sido atacada ou provocada, o grande contraste entre a polícia e os estudantes poderia ter sido perdido. O protesto não-violento dos estudantes na calçada poderia ter sido reformulado como uma ação de uma multidão perigosa, brincando com as sensibilidades do público em geral sobre a lei e a ordem. A possibilidade de tudo desmoronar parecia real. Até que um líder reorganizou brilhantemente a multidão e reafirmou claramente a disciplina não violenta.
No minuto 6 com 12 segundos do vídeo do evento, alguém é ouvido gritando “teste de microfone!”, focando a atenção da multidão e chamando-os para participar de um sistema de amplificação humana, no qual uma multidão repete o que o orador diz, para que todos possam ouvir. O orador (fora da câmera) grita para a polícia: “Estamos dispostos a oferecer-lhes um breve momento de paz. Eles podem pegar suas armas e nossos amigos, e ir embora! Por favor, não voltem!”. Então, a multidão coreia, “Eles podem ir embora! Podem ir embora!”. A multidão finalmente deixa a polícia sozinha, que parece apertada, um pouco perplexa e insegura, despojada do tipo e confronto para qual seu treinamento, seus escudos e suas armas foram projetados. Em vez de a polícia dirigir a situação como uma atuação da força legítima da lei e da ordem, de repente são os estudantes que dão permissão à polícia para se aposentar, reafirmando sua legitimidade como estudantes em seu próprio campus, gritando “De quem é o campus? Nosso campus!”.
Os ativistas não-violentos da UC Davis escolheram permanecer não violentos em face da repressão. Sua resposta disciplinada à agressão com spray de pimenta ajudou a garantir que as ações da polícia pudessem ser claramente interpretadas como desproporcionais, desafiando assim a legitimidade da polícia e até mesmo a dos administradores da universidade, conforme relatado na imprensa. Quando a ação da polícia e a raiva da multidão ameaçaram provocar um confronto violento, o que poderia potencialmente justificar uma maior repressão, alguém deu o passo à frente para lidar com a repressão em tempo real e preservar o quadro da força excessiva por parte da polícia, situação que os ativistas online aproveitaram nos dias e semanas que se seguiram ao incidente.
Os casos em que as autoridades ultrapassam os limites de sua legitimidade e usam força excessiva são comuns nos Estados Unidos e em todo o mundo. A capacidade dos ativistas não-violentos de se preparar para a repressão e cultivar o paradoxo da repressão por meio de um planejamento cuidadoso e criativo é um pouco menosprezada.
Você pode ler uma seleção de casos em que o paradoxo da repressão foi colocado em jogo, visitando o Banco de Dados Global de Ação Não Violenta, e aprender mais sobre o paradoxo da repressão e a gestão da repressão e Ação Não Violenta, pesquisa patrocinada pelo ICNC.