Carla Albala Habif*
Na manhã do último dia 12 de Setembro, recebi a mensagem de whatsapp de um amigo que vive em Uganda com a seguinte frase: “wow you guys have really sentenced the former president!” (uau, vocês realmente sentenciaram o presidente anterior). O dia anterior havia sido intenso e importante com as últimas votações realizadas pela primeira turma do Supremo Tribunal Superior (STF), que resultou na condenação do ex-presidente brasileiro Jair Messias Bolsonaro pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e ameaça grave e deterioração de patrimônio tombado. Após a votação, boa parte da população festejou o cumprimento da justiça e a atuação do STF no julgamento e condenação de Bolsonaro. Mas na manhã seguinte, quando li a mensagem do meu amigo, fiquei reflexiva. “Vocês realmente sentenciaram o presidente anterior?». Vocês?, ele perguntou. E eu pensei, sim, “a gente».
A população civil teve papel central e essencial no processo de retirada – democrática, diga-se de passagem – de Bolsonaro da presidência e seu consequente julgamento. Foram anos de enfrentamento de um governo com discursos e práticas autocráticas, tomadas de decisões que feriram gravemente os direitos humanos e ameaça profunda à democracia. Nestes anos, o Brasil foi citado por várias notícias, estudos e relatórios internacionais, que apontaram para a gravidade do processo de autocratização do país durante o governo Bolsonaro, o aumento de discursos e práticas securitárias em relação a protestos sociais e imigração, aumento das desigualdades sociais, queda preocupante de índices de participação política, polarização política e cívica e deliberação coletiva. A violência política em relação aos eleitores aumentou, também, em 400% entre os anos de 2018 e 2022.
Não se pode deixar de mencionar, ainda, a má administração – senão o descaso – do então governo brasileiro durante a pandemia do COVID-19. Em 2022, o Brasil chegou a computar o terceiro país do mundo com o maior número de casos e, em 2023, o mais grave da América Latina. De acordo com o médico e Professor da UNICAMP, Gastão Wagner Campos, ““Ele [o ex-presidente Jair Bolsonaro] desconstruiu a capacidade de coordenação do Ministério da Saúde de forma muito rápida, por conta das debilidades normativas do SUS, colocando em cargos estratégicos pessoas sem nenhuma experiência”. A gestão de Bolsonaro ainda negou pelo menos 11 vezes a oferta de fornecimento de vacinas contra a Covid e o presidente fez diversas declarações diminuindo a gravidade do vírus, chegando a se referenciar a ele como uma “gripezinha».
Foram quatro longos anos não só de péssima administração de uma pandemia, mas de profunda restrição do espaço cívico, da liberdade de imprensa, falta de transparência administrativa, censura, interferência política no judiciário, perseguição de oponentes políticos, politização da polícia, enfraquecimento de instituições chave e violação de direitos humanos. Diversos grupos sociais foram atingidos por estas violações, tendo grupos indígenas e ativistas ambientais sido particularmente afetados.
Olhando agora, em 2025, muito deste cenário foi revertido, culminando nos acontecimentos da semana passada em que Jair Messias Bolsonaro e outros políticos que colaboraram com ele no planejamento e tentativa de um golpe de Estado no início de 2022 foram julgados e condenados pelo Supremo Tribunal Federal. Esse movimento de redemocratização do Brasil foi consequência do resultado das últimas eleições, que trouxeram Luís Inácio Lula da Silva novamente para a presidência da República. Foi resultado de um sistema judiciário articulado, resistente e estratégico, de resistência burocrática e canais políticos organizados. Mas foi resultado, também, de resistência civil – criativa, organizada, sólida e incansável, ao longo destes 4 anos. E ela não demorou nada para começar.
Pouquíssimo tempo após o anúncio oficial da eleição de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil no dia 28 de Outubro de 2018, um desenho criado pela tatuadora Thereza Nardelli começou a circular fortemente pelas redes sociais até viralizar. A imagem em preto e branco traz um rosa ao fundo e duas mãos dadas, com os dizeres “ninguém solta a mão de ninguém». Em meio ao temor do que estava por vir, a sociedade civil já começava, no próprio 28/10, a se fortalecer e se organizar através da arte e das redes sociais, com a mensagem central de união.
Fonte: Jornal O Globo, 29/10/18
E assim foi. Ao longo dos 4 anos de governo Bolsonaro o Brasil passou por momentos muito difíceis. Mas viu também um florescer de movimentos sociais que tiveram grande participação na eleição de Lula em 2022 e no consequente processo de redemocratização do país. Eles foram muitos e não cabem dentro de um artigo breve. Ao longo das próximas linhas, cita alguns exemplos que marcaram esse período e deixo a forte recomendação de que outros sejam analisados e estudados.
Primeiro, os protestos. Protestos ocorreram pelo país inteiro cada vez que o então presidente – e atual condenado – sancionou alguma lei que ia contra os direitos humanos, a participação cívica e feria a democracia e o meio ambiente. E não, a pandemia da Covid-19 não impediu os protestos de acontecerem. Eles encontraram novas formas de se desenvolver, como foi o caso do famoso panelaço. Quando havia pronunciamento de Bolsonaro, havia panelaço. Milhares de pessoas, em diversos bairros e cidades pelo Brasil, batendo panelas nas janelas de suas casas em símbolo de protesto. Além de se posicionar sobre as falas de Bolsonaro e protestar contra elas, os panelaços trouxeram, ainda, o sentimento de união em meio ao isolamento, de apoio em meio à devastação política e pandêmica e a certeza de que em meio ao cenário devastador, os mais de 40% da população que não votaram em Bolsonaro, estava alerta, unida e pertencente a um movimento maior. Em muitas localidades, o panelaço veio acompanhado de instrumentos musicais, que tornaram músicas como Bella Ciao símbolos da resistência civil neste contexto.
Passados os momentos mais graves de isolamento, as mobilizações voltaram às ruas, embora a prática do panelaço tenha sido mantida durante as falas televisadas de Jair Bolsonaro. Protestos contrários ao então presidente tenderam a ser majoritariamente pacíficos e não-violentos, embora muitas vezes tenham sido reprimidos com força armada. Esses atos em oposição ao governo não foram somente constantes ao longo de seu mandato, mas passaram a ser cada vez mais coordenados entre diferentes setores e cidades e a aumentar em número de participantes.
A atuação civil ao longo deste período também foi forte pelas redes sociais. O governo de Bolsonaro foi marcado e fortalecido pela difusão das chamadas fake news e exatamente por isso, grupos de civis resistentes se mobilizaram nas redes para difundir notícias, vídeos e mensagens que pudessem trazer fatos reais de forma acessível para a população. Houve bastante estratégia por trás da criação de canais de comunicação, difusão de conteúdo e, inclusive, na pressão de big techs para que parassem de financiar grupos de extrema direita.
Ainda no meio tecnológico, um exemplo marcante da resistência civil durante o governo Bolsonaro foi a famosa hashtag #EleNão. Criada ainda em 2018 pelo grupo “Mulheres Contra Bolsonaro», a hashtag carregou um lema simples e potente: Ele Não, Ele Nunca. Por meio de sua utilização, ainda em 2018, milhares de mulheres confirmaram presença em protestos coordenados em 70 cidades brasileiras e, inclusive, em outros países, como Argentina, Estados Unidos, Holanda e Reino Unido. Interessante perceber que em um movimento backfire digital, a propagação da hashtag contou, em grande parte, com o apoio de grupos apoiadores de Bolsonaro. Depois que eles invadiram a página Mulheres Contra Bolsonaro para hackeá-la, acabaram gerando uma reação em cadeia de criação de diversos outros grupos, que acabaram por espalhar a hashtag em números muito mais amplos, de acordo com a análise feita pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic). A hashtag #EleNão perdurou durante os 4 anos de governo Bolsonaro – e ainda perdura – mas a primeira manifestação que ficou conhecida por seu título no dia 29 de Setembro de 2018 foi a maior manifestação de mulheres da História do Brasil até então e a maior contra Bolsonaro até o momento. De acordo com pesquisas realizadas pela Fundação Perseu Abramo, as mulheres brasileiras representaram uma das maiores oposições ao governo Bolsonaro, sendo o grupo com os índices mais altos e constantes de rejeição à sua política.
Fonte: BBC, 30/09/18
Ações de movimentos quilombolas também foram centrais durante os quatro anos entre 2019 e 2022, através de manifestações contínuas, atos de engajamento populacional, articulação, organização e protestos por direitos. Um exemplo foi o Aquilombar, evento que marcou o encontro nacional de quilombolas em Brasília na reivindicação do direito às terras e às tradições. Durante três dias, o Aquilombar reuniu mais de 3 mil quilombolas de todo o país na capital federal, no primeiro ato político organizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ao longo dos encontros, representantes quilombolas apresentaram atividades que estavam desenvolvendo em cada território e através de plenárias a céu aberto, em rodas, quilombolas de diversas comunidades apontaram práticas de agricultura familiar em suas comunidades – consumo, comercialização, turismo de base comunitária – e puderam conversar e trocar experiências.
Outra resistência que não pode deixar de ser mencionada foi a resistência levada a cabo continuamente por povos indígenas, que estiveram entre os mais afetados pelas políticas de Bolsonaro ao longo de seu governo. Em um momento de crise profunda com o desmonte da proteção e fiscalização de territórios indígenas, que gerou um aumento profundo de invasões, assassinatos e violações, a resistência se fortaleceu e consolidou através da articulação entre povos, fortalecimento de organizações, manifestações, protestos e comunicação de informações por meio de redes sociais. Durante todo o mês de Janeiro de 2019, por exemplo, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) lançou a campanha “Sangue Indígena: nenhuma gota a mais” através de uma série de atividades levadas a cabo durante o que intitularam de Janeiro Vermelho. As atividades envolveram rodas de conversa, debates, produção de materiais, divulgação e organização de manifestações. Em Agosto também de 2019, Brasília teve suas ruas tomadas por milhares de mulheres indígenas na Primeira Marcha das Mulheres Indígenas, nas quais estiveram presentes representantes de mais de 113 povos.
Para além de cada um desses movimentos, de cada uma dessas resistências, é essencial apontar a constante articulação de grupos e organizações da sociedade civil na resistência ao governo Bolsonaro. Um de muitos exemplos que podem ser citados neste tema foi o Ato pela Terra. Nesse dia, manifestantes peregrinaram pela Esplanada dos Ministérios, passando pelo STF e pelo Congresso Nacional, em uma ação que durou mais de 8 horas. O ato se colocava contra projetos legislativos priorizados pelo então presidente, que ameaçavam os direitos dos povos originários e sua segurança, bem como a preservação do meio ambiente — denominados pela população como Pacote da Destruição. O Ato foi realizado em conjunto, respondendo ao chamado do artista Caetano Veloso e contando com o apoio a participação da APIB, do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), União dos Estudantes (UNE), Observatório do Clima, Greenpeace, outras organizações e artistas. O Ato pela Terra reuniu 15 mil manifestantes, 230 organizações e coletivos da sociedade civil e mais de 40 artistas.
Enfim, é fundamental levantar sobre o movimento Vira Voto. Principalmente após o primeiro turno das eleições de 2022, na qual o resultado entre Lula e Bolsonaro foi bem apertado, pessoas em diversas cidades pelo país foram às ruas para estabelecer diálogo com cidadãos – principalmente os indecisos – na intenção de explicar a importância de mudar o governo urgentemente. O movimento utilizou uma série de abordagens, desde rodas de diálogo, até conversas pessoais e, de acordo com os participantes, inclusive humor e mobilizações de escuta. Os “vira voters«, como ficaram conhecidos, também se utilizaram de grupos de telegram, panfletagem e propagação de materiais.
Vale ressaltar que todos esses movimentos, além de mobilizar e articular grupos e organizações, serviram como apoio e força para toda essa população que se encontrou violentada ao longo desses quatro anos. Ir na janela para o panelaço e escutar centenas de panelas sendo batidas, ler um post com a hashtag #EleNão, lembrar da frase “Ninguém Solta a Mão de Ninguém” nos momentos mais desafiadores foram, além de resistência externa, um lembrete de que não estávamos sós e que havia toda uma comunidade de pessoas vivenciando dores comuns, desejos e lutas por um futuro mais justo.
A lista das resistências civis é longa e nenhum único artigo pode dar conta dela. Em complementaridade a uma série de outros movimentos políticos, judiciários e burocráticos, as mobilizações sociais, bem como as articulações entre elas ao longo dos quatro anos em que Bolsonaro esteve no poder, foram fundamentais para sua derrota democrática nas urnas em 2022 e na pressão pelo julgamento e condenação de seus crimes. De fato, ninguém soltou a mão de ninguém. Não foi fácil, não foi rápido, foi uma construção e trouxe resultados positivos. Todas essas resistências são, acima de tudo, uma lição para o Brasil e pro mundo, de que o povo tem poder – e muito poder. A condenação de Bolsonaro foi conduzida pelo Supremo Tribunal Federal e apoiada por mecanismos políticos democráticos e devemos manter em mente que a grande base para que isso fosse possível foi a ação da sociedade civil ao longo dos últimos anos. Curiosamente (ou não tão curiosamente assim) ao analisar brevemente os exemplos mencionados neste texto, percebi que muitos deles receberam pouca cobertura, documentação ou divulgação pelos grandes meios de comunicação nacionais — quando não foram completamente ignorados. Devemos concentrar forças, agora, para que essas ações se mantenham fortes, sejam estudadas, sistematizadas e documentadas e que elas sirvam como aprendizado e lembrete de que é necessário o apoio de toda uma população civil para um governo se manter no poder. Para que ele perca força e seja devidamente acusado e condenado de seus crimes, também.
*Carla Albala Habif é Doutora em Relações Internacionais, pesquisadora do Centro de Estudos em Conflito e Paz (NUPRI/USP) e do Global South Unit for Mediation (BRICS Policy Center) e coordenadora de programa no Instituto Regional para o Estudo e a Prática da Ação Não-Violenta Estratégica nas Américas.
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