Sofía Chipana Quispe
O tempo em que teço estas palavras nos liga à força daqueles que viveram seu tempo de transformação – o Dia dos Mortos, que para o quíchua é o Aya Marqay Killa, ou seja, o tempo da lua daqueles que partiram. Mas, de acordo com avôs e avós, eles chegam para visitar seus entes queridos. São presenças que vem com as chuvas para regar as sementes depositadas no ventre da Mãe Terra, assim como seus corpos que buscam renascer para os outros modos de vida.
A partir das oferendas de alimentos e bebidas que prepara os para recebê-los, compartilho com a permissão dos ancestrais, a memória do movimento do Taki Onkuy que permitiu que alguns povos resistissem e resistam à invasão colonial e à alienação das experiências cosmos. Certamente houve outras experiências que sustentaram a vida dos diversos povos que habitaram a grande Abya Yala, a terra de sangue vital, de plena floração, como se chama a territorialidade da América Latina, que ainda sustenta a vida dos povos que não só resistiram ao genocídio sistemático dos sistemas coloniais capitalistas e patriarcais. Uma resistência a partir da qual se tecem os outros modos de vida, que chamamos de espiritualidade.
Da força do tempo que habitamos evoco a presença e as palavras de Bertha Cáceres em suas conversas com os rios Gualcarque e Blanco (em Honduras), com as quais enfrentou o projeto hidrelétrico de Aqua Zarca. Daí extraio esse sentimento compartilhado para dar título ao tecido (texto) que apresento: “Eu sabia o quão difícil seria, mas sabia que íamos ter sucesso, o rio me disse.”
O vínculo com os territórios-corpos e os povos ancestrais tem a força das memórias que acompanham suas resistências diante das realidades de opressão, repressão e extermínio de seus corpos denominados “índios” e, junto a eles, seus territórios.
Na travessia das resistências, nos aproximamos da comunidade de Taki Onkuy que se localiza nos anos de 1560-1572, quase nos primeiros tempos da invasão colonial, nas regiões do centro (Ayacucho) e sul (Arequipa) do Peru – embora alguns estudos também a coloquem nas regiões quíchuas do que é Sucre, na Bolívia -. Trata-se de um movimento nomeado pelos inquisidores como a doença do canto porque eles haviam assumido o canto e a dança para entrar em comunhão com os lugares sagrados destruídos como w’acas, onde localizavam as forças vitais que adquiriam vida em seus corpos.
Esta resistência sustentava-se na espiritualidade que encaminharia a renovação e reconstrução das espiritualidades ancestrais, para superar a predominância das estruturas religiosas e sociais dos invasores e das elites incas que se haviam estendido pelos territórios andinos. Por isso, é catalogada como um movimento sociorreligioso que buscava a unificação andina a partir dos laços comuns que provinham das espiritualidades ancestrais ligadas às montanhas, lagoas, lagos, mares, florestas e paqarinas – lugares onde habita a força e memória dos ancestrais – , que remeteram às origens da vida. Origem que em Aymara se denomina como Taypi, o tempo em que o cosmos foi se harmonizando e equilibrando, e a vida dos diversos seres começou a germinar.
A resistência de Taki Onkuy vinha do vínculo com o coração da Grande Rede ou Comunidade da Vida, pelo que desde o canto e a dança buscavam curar os territórios feridos por causa do desequilíbrio que produzia a presença profanadora e inquisidora dos invasores. Enquanto alguns resistiam por meio da luta corpo a corpo contra os invasores, o movimento do Taki Onkuy, a partir da conexão com as forças cósmicas e telúricas, buscava interpretar as mensagens que traziam os movimentos de Amaru, a serpente ancestral que habita nas profundezas dos vulcões, as altas cordilheiras, e deixava sentir sua força telúrica por meio de terremotos que possibilitaria uma nova ordem.
A conexão com Amaru, uma das forças vitais do cosmos, supôs a busca de uma recriação da vida de muitos povos em Abya Yala sobrevivessem. Por outro lado, deve-se notar que Amaru era a força evocada por meio da nomeação, como se fez com o último governador Inca, Tupac Amaru I, cuja revolta supôs sua decapitação no ano de 1572. Este fato foi relacionado à história do Inkarri (Rei Inca) cuja cabeça decapitada busca se unir ao seu corpo. É uma força que sustenta os diversos levantes, como foram as significativas organizações promovidas por Tupac Amaru II (1780) e Tupac Katari (serpente, em aymara) em 1781.
A breve revisão que apresentamos nos permite ver o profundo anseio pela reconstituição dos territórios e corpos em relação às forças vitais que fluem e mantêm a vida dos povos. Isso supõe a conexão com a memória milena da qual fazem parte e buscam sua dignificação para questionar a ordem estabelecida a partir do sistema colonial que se legitima nas estruturas sociais e religiosas.
É significativo que, apesar da imposição de tais estruturas, as próprias interpretações mantêm suas resistências, como se pode vislumbrar no movimento do Taki Onkuy em que seus líderes assumem os nomes critãos bíblicos relacionados à Cruz de Cristo: João Chocne (ou Chocna), Santa Maria e Santa Maria Madalena. Possivelmente, com muita intenção, para refletir sua realidade naquele corpo do crucificado, ou de ver a fragilidade do Deus cristão vencido na Cruz.
Embora a memória de Taki Onkuy nos chegue como parte da memória ingrata, nos permite ver o vínculo território-corpo que os povos andinos mantinham. Embora não tenhamos muitos registros sobre as resistências não violentas e as que nos chegam são mediadas pelo olhar dos cronistas. No entanto, eles são percebidos no sentimento que acompanha as resistências nos diversos territórios, que busca de forma permanente curar os territórios, corpos e terras. Não é um processo fácil pela criminalização da defesa de todas as formas de vida que assumem os diversos povos.
Pois se trata de experiências cosmos que resistem a partir de suas espiritualidades relacionais, como compartilhou Bertha Cáceres em suas palavras replicadas, que haviam “aprendido a lutar com música, com cerimônias, com espiritualidade”, a fim de restabelecer as relações de correspondências recíprocas que procuram o equilíbrio e a harmonia como uma força de cura que recria a vida, diante das opressões do patriarcado, capitalismo, racismo, sexismo.
E como propõe Lorena Cabnal, a partir do feminismo comunitário, trata-se da cura como caminho político cósmico, nas dinâmicas e relações cotidianas, onde resistir é também recriar a vida – muitas vezes não consideradas como lutas e resistências pelas formas hegemônicas de compreendê-las. Pois bem, os povos, a partir de seus princípios vitais, buscam enfrentar as imposições para manter e melhorar suas condições de vida. É o caso do processo de seleção, cuidado e plantio das sementes que geralmente são assumidos pelas mulheres como uma política em que se decide salvaguardar a soberania alimentar e o cuidado das sementes ancestrais, contra as políticas extrativistas das sementes transgênicas e o monocultivo.
Implica os processos que buscam ser assumidos de forma holística, como acontece na demanda das mulheres indígenas que não se limitam apenas a levantar seus direitos, mas à dignação ou cura da vida. Enquanto o poder patriarcal colonial não o reconhece com força e poder, eles não são tomados como lutas. Da mesma forma acontece com as histórias narradas, onde o poder bélico se impõe e não tanto as resistências que conseguiram quebrar certos sistemas de domínio.
Quero concluir com a memória curativa de outras cinco mulheres, lideradas por Domitila Chungara no comitê de donas de casa da organização mineira do século XX na Bolívia – que pouco se reconhece nas lutas dos sindicatos e nos próprios coletivos feministas, e menos pela história oficial-.
Elas, em 1978, iniciaram em La Paz, sede do governo da Bolívia, uma greve de fome para enfrentar a ditadura militar de Hugo Banzer, projeto político que percorria diversos territórios como parte do Plano Condor que foi aplicado em diversos países pela Escola das Américas, operada pelo exército dos Estados Unidos.
Domitila, suas companheiras e suas filhas e filhos empreenderam a greve de fome à qual se juntaram milhares, conseguindo derrubar a ditadura. Embora o regime militar tenha se articulado novamente perseguindo com maior violência, até o ano de 1982.
Domitila deixou uma grande lição, a de pedir a palavra e vencer o principal inimigo: o medo. O que a levou a enfrentar o poder sanguinário da ditadura militar, como parte das extensões coloniais que tiraram e silenciaram a vida de milhares, às quais devemos adicionar os milhões de vidas e povos ancestrais que foram extintos pelo poder genocida que buscou sistematicamente silenciar os outros modos de vida que representavam uma ameaça a seus interesses.
O tecido da vida: reflete um tecido vivo, estendido e entrelaçado em todas as suas dimensões e profundidades, onde tudo tem seu lugar e seu tempo, inter-relacionado no movimento harmônico das forças que fazem a Vidam seus ciclos e retornos. Nos lembra de todos os seres em comunidade, nossa capacidade de criar e transformar possíveis realidades, Somos as mãos que tecem nesta extensão do coração. A foto ;e uma arte-tecido de Erlini Chove Tola Medina.
* Sofía Chipana Quispe
É aymara do Estado Plurinacional da Bolívia. Membro da Comunidade de Sábias e Teólogas Indígenas de Abya Yala, e caminha junto à Comunidade de Teologia Andina do Peru, Bolívia e Argentina.
Traduzido por Lívia Bueno