Lizeth Guaman
Aproximadamente ao meio-dia de 2 de Outubro de 2019, o então presidente do Equador, Lenin Moreno, publicou um conjunto de medidas econômicas que teriam efeito a partir da meia-noite de quinta-feira, 3 de Outubro, daquele ano.
Várias das medidas respondiam ao acordo que o governo equatoriano firmou um mês antes com o Fundo Monetário Internacional(FMI), para obter um crédito de USD 4.209 milhões em três anos. Entretanto, das seis medidas econômicas anunciadas pelo presidente, o Decreto 883 correspondia a eliminação de subsídios aos combustíveis diesel e extra (ambos de consumo massivo). Esse foi o estopim que desencadeou o início das manifestações pelo maior impacto social que a sociedade equatoriana teve.
Depois do anúncio das medidas, o sindicato dos grupos ligados ao setor de transporte foi o primeiro a convocar uma paralisação nacional. Dois dias depois, em 5 de outubro, organizações sociais como a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), sindicatos de trabalhadores, estudantes, grupos de mulheres, ativistas, entre outros. Homens, mulheres, jovens, adultos maiores e até crianças que acompanhavam as suas mães, nos unimos às manifestações pacíficas até chegar na capital (Quito). No trajeto, era possível observar que levavam consigo panelas, pratos, colheres, água e alimentos para compartilharem durante o protesto. No entanto, diante do avanço das organizações indígenas, os militares conseguiram invadir/irromper algumas comunidades rurais com o objetivo de impedir sua mobilização
Desde o início, a violência escalou rapidamente. Isso ficou evidente na repressão policial e militar, os enfrentamentos entre a força pública e os manifestantes, os roubos e atos de vandalismo. Segundo o Informe de Verificação sobre DDHH Paro Nacional e levantamento indigena 3-13 outubro de 2019, realizado pela Aliança de Organizações pelos Direitos Humanos, houve um abuso desproporcional, injusto e arbitrário da força pública contra os manifestantes, desde do dia 3 de outubro. Depois de 11 dias de protesto, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador(Conaie), através de um comunicado, apontou que a repressão de outubro de 2019 deixou um saldo de 11 mortos, 1300 feridos, mais de 30 mutilados e um milhar de detidos.
As mobilizações contaram com a participação de mulheres de distintos espaços e setores sociais do país. Foi assim que, diante do chamado de nossas organizações, as mulheres das comunidades indígenas saíram do nosso território para se juntarem à mobilização. Desde nossa chegada a Quito, as dinâmicas organizacionais das mulheres refletiram nas atividades que iam desde a preparação e provisão de alimentos, levar pãezinhos com leite, aga e bicarbonato para socorrer os companheiros e companheiras que acabam afetados pelas bombas lacrimogêneas, até marchar e tentar chegar a Assembleia Nacional (poder legislativo) junto aos homens. Para o dia 11 de outubro de 2019, os episódios repressivos e violentos por parte da força pública e alguns manifestantes foram muito mais evidentes. Cabe ressaltar que, até o dia anterior, a repressão já contava cinco mortos, entre eles Inocencio Tucumbi. Para ele, realizaram um funeral público na Ágora da Casa da Cultura(Quito).
Antes dos episódios de violência durante os dias de protestos e do desespero das mulheres pelos seus filhos, irmãos, pais e esposos desaparecidos e feridos, a manhã de 11 de outubro, em uma nova tentativa de chegar a Assembleia Nacional pelo parque El Arbolito – lugar estratégico e tradicional de concentração popular-, as mulheres indígenas fizeram um chamado para que mais mulheres se juntassem, marchassem e tomassem a frente do protesto pacifico junto conosco. Acompanhadas pelos dirigentes e companheiros, as mulheres começaram a chegar uma a uma diante do chamado da multidão.
Pouco a pouco, mulheres indígenas de diversas comunidades e povos, assim como mulheres mestiças e de organizações sociais, formávamos o primeiro grupo que avançaria de forma pacífica para a Assembleia Nacional. Esse grupo também estava acompanhado por homens, os quais se posicionaram ao final da marcha.
Antes de avançar pelas ruas para expressar a inconformidade contra as medidas econômicas, as mulheres que nos encontrávamos à frente formamos uma espécie de cordão os braços para avançar juntas, unidas, organizadas com o intuído de impedir a ocupação desse lugar, evitando a exposição a repressão da força policial e militar já que a alguns passos se encontravam veículos antidistúrbios que impediam o caminho até a Assembleia Nacional. Apesar deles, nosso grupo de mulheres avançou com as mãos vazias e levantadas, enquanto gritávamos o lema para a polícia: Somos mulheres e não somos delinquentes!
Com pequenos passos, mas firmes, as mulheres avançaram enquanto os efetivos da força pública retrocediam. O caminho foi longo e cheio de aclamações em favor da paz e pelo fim da repressão, cantando “nem uma pedra, nem uma bomba mais”. Entretanto, o trajeto não ficou isento de repressão e violência por parte da força pública e alguns grupos infiltrados nas manifestações. Porém, isso não impediu nossa chegada até a entrada principal do poder legislativo.
A chegada das mulheres foi um ato simbólico que convidava levantar e mostrar as mãos vazias, sentar e gritar:
“Nem uma pedra, nem uma bomba mais!”
“Warmikuna Kaypimi Kanchik! (Tradução: “Aqui estão as mulheres”)
“Somos filhas, nossas mães nos esperam!”
“Somos as filhas do primeiro levantamento(indígena)”
Os gritos foram cantados e acompanhados pelo choro das mulheres que, sentadas em frente dos grupos da força pública, pedíamos o fim da repressão e o ingresso de mulheres das organizações nas imediações da Assembleia Nacional. Elas, acompanhadas e protegidas pelos policiais e militares, fariam uma tomada simbólica e pacífica. Avós, mães, filhas, irmãs, esposas repetimos várias vezes “Somos filhas, nossas mães nos esperam!”. Depois desse episódio, vários militares se aproximavam e diziam para não nos preocuparmos, que não iria acontecer nada e que estávamos seguras ali. Também, alguns homens se aproximavam e perguntavam se precisávamos de algo. A maioria respondia que estava com fome, então, aqueles homens traziam consigo alimentos e frutas que nós compartilavamaos umas com as outras e com as forças públicas pelas grades que nos separavam.
Entretanto, pouco durou o ambiente de paz e esperança. Enquanto compartilhávamos os alimentos, dois helicópteros aterrissaram nos arredores da Assembleia Nacional. Assim, iniciou-se novamente a repressão, sem nenhum motivo e de forma desproporcional contra as mulheres que nos encontrávamos ali sentadas, conversando e comendo. Podíamos ver de perto como as bombas lacrimogêneas estavam por todos os lados e as mulheres, homens, jovens, incluindo crianças com suas mães, corriam desesperadamente tentando fugir daquele lugar. Muitas mulheres foram asfixiadas pelos gases e caíram no chão.
Dois dias depois, o 13 de outubro, se realizou a reunião entre a Conaie e o governo, a qual foi mediada pela ONU e pela Igreja Católica. O encontro, televisionado em rede nacional, teve como resultado a revogação do Direito 833 e a composição de comissões para a elaboração de um novo documento que substituiria esse direito. Da mesma forma, com esse evento, os protestos e mobilizações que tiveram atos por todo o país terminaram.
Se por um lado outubro foi repressão, medo, violência, choro, dor e morte, por outro foi luta, esperança, força e resistência contra as medidas que atentaram contra os direitos humanos. Nesse sentido, é necessário manter viva a memória das mulheres que se manifestaram e resistiram durante esse mês em 2019, já que graças a seu protagonismo e liderança foram, são e serão “as filhas do primeiro levantamento indigena” que ocorreu em 1990.
Outubro rebelde segue presente!
Licenciada em Relações Públicas pela Universidade Técnica do Norte. Estudante de Mestrado em Relações Internacionais, menção Segurança e Conflito(Flacso Equador)
Traduzido por Isaque Augusto